Os primeiros meses da pandemia de covid-19 marcaram uma mudança nos hábitos de consumo das famílias. As restrições impostas à mobilidade diminuíram o consumo de serviços em relação ao de bens no mundo todo, tendo aumentado em particular o consumo de duráveis. Ao mesmo tempo, houve uma restrição na oferta de insumos para a produção desses bens. Já no decorrer de 2021, a retomada dos serviços presenciais levou a uma queda na demanda relativa por bens. Somado a isso, as consequências da guerra na Ucrânia ajudaram a deteriorar ainda mais as condições de demanda. Como consequência de todo esse processo, acompanhamos nesse período um atraso na entrega de pedidos e uma grande formação de estoques, dinâmica essa conhecida como bullwhip effect, ou efeito chicote.
O bullwhip effect é um fenômeno que ocorre na cadeia de suprimentos, decorrente da incapacidade dos agentes em realizar previsões acuradas. Tal fenômeno descreve como pequenas oscilações na demanda no nível do varejo podem causar variações progressivamente maiores na demanda dos demais agentes da cadeia, passando pelo atacado, distribuidor, fabricante e fornecedor de insumos – esse nome deriva da semelhança com o comportamento de um chicote. Parte importante do fraco desempenho recente da indústria global pode ser explicado pela presença desse efeito nas cadeias de produção, conforme explicaremos a seguir.
No que se refere ao cenário macroeconômico recente, o início desse efeito se deu pela resposta do varejo e da indústria ao movimento de alta demanda por produtos manufaturados. Os agentes interpretaram esse movimento como uma sinalização de maior demanda futura, resultando em uma elevação sobremaneira das novas ordens de insumos e produtos industriais. Soma-se a isso o cenário de incerteza global, muito por conta do abre e fecha da economia e da crise na cadeia de suprimentos, principalmente em 2021, o que levou a um aumento no tempo de entrega dos fornecedores. Como resultado dessa incerteza, há uma margem de segurança adicional nos pedidos feitos ao setor manufatureiro – contribuindo ainda mais para o aumento da “amplitude do chicote” na cadeia. O sucessivo aumento de ordens, juntamente com um maior tempo de entrega destas, atrasou a chegada dos pedidos novamente ao varejo, contribuindo para uma elevação no backlog de ordens a serem cumpridas.
Já em 2022, com a retomada da atividade econômica a nível global e a normalização dos serviços presenciais, a demanda relativa por bens diminuiu, de modo que quando essas ordens de fato retornaram ao varejo, elas se depararam com uma demanda não só menor, mas também decrescente. Parte relevante da queda na demanda pode ser explicada também pelas consequências da guerra na Ucrânia, que vem gerando uma crise de energia sem precedentes na Europa, alimentando pressões inflacionárias nos países da região e se espalhando também para os EUA. Já na China, embora o país tenha passado por um bom desempenho das exportações nos primeiros sete meses do ano, a indústria local também sofreu com a demanda internacional cadente, além das interrupções causadas pela política de covid zero. No caso dos manufaturados, essa deterioração da demanda pode ser notada pelo viés de queda no indicador de novas ordens de exportação. Como consequência dessa demanda cadente, o caminho percorrido pelo setor manufatureiro acabou gerando um excesso na formação total de estoques de produtos industriais nos últimos meses desse ano.
Em condições onde a economia está saudável, o processo natural de estabilização da demanda levaria ao equilíbrio entre oferta e demanda, que resultaria em uma queima desse excedente e a um nível de estoques conforme o planejado pela indústria geral. Contudo, enfrentamos hoje o temor de uma recessão global, causado pelos apertos monetários realizados pelos bancos centrais das principais economias avançadas para lidar com as pressões inflacionárias. Isso desestimula ainda mais a demanda, em um momento em que os estoques já estão excessivamente altos. Assim, mesmo em um contexto de suavização da crise na cadeia de suprimentos, conforme observado pela tendência de normalização do tempo de entrega de fornecedores e da queda recente nos backlogs de ordens, a desaceleração do indicador de novas ordens contribui para a manutenção do nível dos estoques acima do planejado. A queda desse indicador de demanda, como consequência do squeeze na renda das famílias, e essa manutenção de excedente nos estoques, geram uma menor necessidade de utilização da capacidade produtiva das fábricas, o que vem reduzindo a pressão sobre as cadeias de produção e pressionando os preços para baixo. Como consequência última, as empresas tendem a diminuir compras futuras de insumos, o que contribui para diminuir a produção industrial agregada.
Em síntese, vemos como principais razões da contração esperada na manufatura global 1) o movimento de normalização nos hábitos de consumo em favor dos serviços, que ajudou a diminuir a demanda relativa por bens; 2) a deterioração das condições de demanda na Europa e nos EUA, causadas pelo squeeze da renda real das famílias com os altos preços de energéticos e duráveis, e pelos apertos monetários realizados pelos bancos centrais das economias avançadas; e 3) o bullwhip effect, como consequência direta dessa demanda cadente, ocasionando uma formação excessiva de estoques de produtos industriais.
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