Forte inflação e expressiva elevação nos juros ao redor do mundo são dois fatores muito comentados, que caracterizam a peculiaridade do nosso ambiente atual. Outro, menos olhado, mas de grande importância, diz respeito à força da moeda norte-americana, que se mostra nos seus maiores níveis em duas décadas; movimento este ilustrado pelo DXY, índice que mede a força do dólar frente a uma cesta de moedas de países desenvolvidos (em particular o euro, a libra e o iene japonês).

Neste texto, vamos lançar luz aos fatores que tracionam a escalada global do dólar, percorrendo também as danosas consequências deste movimento e os riscos associados.

Em particular, sustentaremos a força do dólar a partir de:

1) o diferencial de crescimento da economia americana em relação aos seus pares;

2) o temor de uma recessão global e a incerteza, que leva a uma busca pelo porto seguro do dólar; e

3) o aperto monetário realizado pelo banco central americano (Fed), que favorece o diferencial de juros em favor dos EUA.

Em termos de consequências, abordaremos as sequelas causadas por esse movimento com base na visão de:

A) o aperto das condições financeiras globais, em especial nos mercados de dívida; e

B) a exportação de inflação dos EUA para o resto do mundo, em um ambiente já com forte pressão inflacionária pela via da oferta.

Causa n° 1) O diferencial de crescimento da economia americana

No esforço de compreender o dinamismo da moeda americana, o diferencial de crescimento em favor dos EUA, fruto da robustez de curto prazo da sua economia, é um dos fatores centrais. Enquanto seus pares desenvolvidos passam por dificuldades idiossincráticas, o mercado de trabalho americano segue forte e a demanda agregada pressionada. Mesmo apresentando queda nos dois primeiros trimestres de 2022, o PIB real dos EUA se encontra hoje 3,5% acima do seu nível ao final de 2019; e a taxa de desemprego se situa em 3,5%, indicando força na atividade. Mas a estória não trata apenas do dinamismo americano, como crucialmente de uma fraqueza nos seus pares.

Em destaque temos a economia da Zona do Euro, onde o squeeze de energia em decorrência da guerra na Ucrânia é vetor importante para compreender essas dificuldades, à medida que confere um choque mais intenso na inflação pela via da oferta. O corte no fornecimento de gás natural pela Rússia elevou sobremaneira os preços e fez surgir um risco de racionamento de energia na região, à medida que o inverno se aproxima. O bloco, grande dependente das importações energéticas, sofre como consequência importante choque, que atua como um imposto sobre a renda disponível e levanta a perspectiva de uma recessão. Nesse cenário, como os EUA são exportadores líquidos de energia, enquanto a Europa é importadora, os termos de troca da economia americana são favorecidos, o que fortalece o dólar por esse canal.

Os altos preços de energia e alimentos afetam também a economia do Reino Unido, que já sofre por dificuldades internas, e alimentam um risco de recessão no país. Por outro lado, temos o Japão, onde a baixa inflação é fruto do fraco dinamismo da economia, que vem levando o país a uma estagnação desde o final do século passado e desestimula investimentos futuros. Ainda em termos de fraqueza da atividade, citamos a China, que enfrenta dificuldades conjunturais, em decorrência da política de covid zero; e estruturais, muito por conta do seu modelo de crescimento direcionado ao setor imobiliário, que passa por profunda crise. Assim dizendo, ao mesmo tempo em que a economia americana sinaliza robustez, a maioria de seus pares enfrenta relevantes dificuldades no âmbito da atividade, amparando o dinamismo do dólar.

Causa n° 2) O temor de recessão global

Demais, outro fator central a este movimento diz respeito ao ambiente de relevante incerteza, com crescente temor relativo ao risco de recessão e correção nos ativos de risco, além de tensões geopolíticas marcantes na Europa e em demais partes do mundo. Quando cresce, nos mercados globais, a apreensão e a aversão ao risco, há a busca pelo que se percebe como seguro. Neste contexto, em adição ao pano de fundo de atividade, a aversão ao risco nos mercados oferece importante suporte à moeda norte-americana. O gráfico abaixo ilustra esse temor de recessão, com base no movimento de aperto das condições financeiras; quanto mais positivos forem seus valores, mais apertadas estão as condições nos mercados.

Causa n° 3) O aperto monetário do Fed

O terceiro, e potencialmente mais importante, fator de contribuição para a fortaleza do dólar, é o aperto monetário realizado pelo Fed para conter o aumento da inflação, nas máximas de 40 anos. O maior dinamismo da economia americana relativo a seus pares oferece um suporte para o banco central defender a sua postura mais agressiva quando do aperto de juros. A força da atividade, que tem como bom termômetro um mercado de trabalho ainda aquecido, e a significativa poupança das famílias acumulada durante a pandemia; são percebidos pelo Fed como pontos que garantem resiliência à economia em receber importante aperto de juros. Neste ambiente, o Fed pode caminhar para um patamar mais restritivo e de maneira mais rápida para perseguir o controle da inflação.

Demais, no caso americano há decisiva contribuição da demanda para o comportamento da inflação, o que confere maior tranquilidade ao Fed no emprego dos juros como ferramenta de ajuste. No caso europeu, existem alguns fatores ausentes na economia que dificultam uma postura mais austera do Banco Central Europeu (BCE), que são:

1) A perspectiva de forte recessão no bloco, que aumenta as incertezas e atua como um entrave ao movimento de elevação das taxas a um patamar muito acima do neutro; e as pressões inflacionárias vindas de componentes de oferta, como resultado das tensões geopolíticas, limitando o potencial da política monetária como instrumento de redução da inflação;

2) A intenção de evitar uma fragmentação financeira do bloco, devido a um aumento nos spreads de títulos de países periféricos, como a Itália. O déficit em conta corrente do país, a situação fiscal e seu momento de incerteza política alimentaram a volatilidade dos títulos italianos; isso dificulta uma elevação no pace de aperto pelo BCE, uma vez que levaria os rendimentos desses títulos a níveis ainda maiores e abalaria tanto o mercado de dívida italiano quanto a estabilidade financeira do bloco.

O diferencial de juros favorável aos americanos não se expressa apenas quando comparado aos europeus. Se de um lado temos uma questão inflacionária preocupante na Europa, do outro temos o caso do Japão, onde a inflação é historicamente baixa, mas que também enfrenta uma desvalorização da sua moeda, que chegou a cair 29% só em 2022. A desvalorização do iene japonês tem sua origem na condução da política monetária realizada pelo BoJ (Bank of Japan), que caminha na direção oposta do que faz o Fed. Enquanto o banco central americano encerrou seu ciclo de compra de ativos e fez sucessivos aumentos nas taxas de juros, o banco japonês ainda defende a política de compra de títulos públicos (Japanese Government Bonds, ou JGBs) e a manutenção dos esforços de controlar as taxas de juros. Vale lembrar que o banco controla a curva de juros com compras regulares. Significa dizer que enquanto o Fed vende títulos, o BoJ compra o que for necessário para manter os juros baixos. Isso favorece o diferencial de juros em favor dos EUA e, consequentemente, aumenta a demanda por dólares, fortalecendo a moeda.

Dito isso, parece mais claro como o ganho de força do dólar, as decisões do Fed e a consequente elevação nas taxas de juros americanas produzem importantes sequelas para a economia global.

Consequência A) O aperto das condições financeiras globais

De partida, há uma saída de recursos do mundo desenvolvido para os EUA, o que acaba por onerar as condições financeiras globais; movimento expressado por pressões para baixo nas equities e no aperto nos mercados de crédito. Como reflexo do aperto, empresas globais que captam recursos em dólares no mercado internacional sofrem um choque duplo. Com a disparada dos juros e um dólar forte, elas veem suas dívidas aumentando, à medida que a fraqueza das outras moedas aumenta os spreads nos financiamentos denominados em dólares e aumentam os custos de empréstimos externos. Mesmo quando o hedge cambial é utilizado, o custo do instrumento sobe devido ao movimento de juros crescentes, levando a um choque nos balanços dessas empresas. A título de exemplo, interessante notar o impacto do aperto das condições financeiras nos mercados de títulos privados.

Consequência B) A exportação de inflação dos EUA para o resto do mundo

Num cenário que já descreve uma inflação muito apertada, há ainda uma nova pressão na margem para o aumento dos preços. A inflação observada hoje no mundo tem grandes componentes de oferta, muito ligados a questões de energia e alimentação. Em 2022 os preços de commodities energéticas e agrícolas se elevaram sobremaneira, e como essas commodities são precificadas em dólar, tal fato exerce ainda uma pressão de câmbio sobre esses preços. Isso dificulta ainda mais o combate à inflação, principalmente na Zona do Euro, ao ponto de surgirem iniciativas fiscais como tentativa de se fazer uma compensação dessa pressão inflacionária vinda dos altos preços de energia e do dólar. Por mais bem intencionados que sejam esses pacotes, eles fazem com que os bancos centrais precisem ir além no aperto para perseguir o controle da inflação em princípio.

Fora isso, a aparente contradição entre a política fiscal e a monetária pode gerar estresse nos mercados de dívida, por ser percebida como um aumento de risco fiscal. Exemplo mais recente de instabilidade fiscal é o caso do Reino Unido, onde o pacote de estímulo anunciado pelo ex-ministro das finanças Kwasi Kwarteng abalou os mercados de títulos públicos britânicos (GILTS), ao passo que que não contava com uma fonte de financiamento para arcar com as medidas expansionistas. Num quadro de persistente pressão inflacionária, essas medidas levaram a um aumento não linear dos rendimentos das GILTS, o que forçou o BOE (Bank of England) a entrar com um programa de compra de títulos em meio a uma política de aperto monetário, como tentativa de conter o aumento dos yields.

Resumindo:

A pressão causada por um dólar mais forte onera as condições financeiras à medida que provoca uma saída de recursos do mundo desenvolvido, gerando uma pressão generalizada nos mercados de dívida privada. Somado a isso, estresse é causado também no mercado de dívida pública, ao passo que a exportação de inflação dos EUA para o mundo abre espaço para pacotes de estímulos que podem alimentar o risco fiscal.

Ao mesmo tempo, a permanência de um dólar muito forte no quadro de persistente inflação convida os países a intervir nos mercados de câmbio, no sentido de conter a pressão de desvalorização em suas moedas. Geralmente, estas intervenções se dão por meio da venda de dólares, como recentemente fez o Banco Central do Japão. Para ocorrer, as autoridades primeiro precisam dispor da moeda em sua forma líquida, acessando as reservas internacionais. Geralmente, as reservas são alocadas nos títulos mais seguros do mundo, as Treasuries americanas. Nesse sentido, os bancos centrais liquidam parte das suas reservas internacionais, o que tende a enxugar ainda mais a liquidez dos mercados de títulos públicos, podendo causar um aumento não linear das taxas de juros.

Assim parece plausível a ocorrência de um ciclo vicioso, em que a intervenção nos mercados de câmbio sequer é capaz de amenizar o problema. Ao vender títulos do tesouro para intervir nos mercados de câmbio, os países contribuem para aumentar as taxas destes bonds, o que por sua vez volta a fortalecer a moeda americana.

Desta forma, entendemos que de fato há o risco de, não checada, a fortaleza do dólar e o impulso que confere ao movimento de alta dos juros; produzirem instabilidades e bolsões ilíquidos no mais importante mercado do mundo, com potenciais de gerar uma crise nos mercados financeiros ou exigir algum tipo de intervenção por parte do Fed.

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